João Samouqueiro em 1958
João Samouqueiro em 1958
João Samouqueiro em 28 setembro 2017
João Samouqueiro em 28 setembro 2017

Investigação jornalística sobre a greve de 1957- Entrevista realizada em 2008 ao Sr. João Samouqueiro, antigo salineiro, e publicada no Jornal de Alcochete com o título «Alguns foram torturados»

O Sr. João Samouqueiro viveu os acontecimentos de 1957 e esteve preso na prisão do Aljube durante 3 meses. Passou pela cela 14, «O segredo» e lembra-se com exactidão desses dias vividos antes e durante a prisão. 

Jornal de Alcochete- Quantos anos tem sr. João?

João Samouqueiro- Tenho 74 anos.

J.A- Com quantos anos começou a trabalhar nas salinas?

J.S- Comecei a tirar sal com 14 anos, na Marinha do Norte, em Vasa Sacos, Concelho de Benavente e trabalhei até aos 24 anos. Depois fui trabalhar para a Câmara Municipal como cantoneiro e aí fiquei até me reformar.

J.A-Começou como aguadeiro?

J.S- Como todos os salineiros, comecei como aguadeiro aos 7 anos. O meu pai trabalhava nas salinas e eu ia com ele. O meu trabalho era como o de todos os outros, carregar água para os salineiros. A água para cozinhar íamos buscá-la à Marinha do Norte porque era mais pesada e não era boa para beber. Para dar água aos salineiros íamos buscar água ao poço da Marinha do Sul.

J.A-Como era o dia a dia do salineiro?

J. S.- Para lá chegarmos, tínhamos de andar 18 kilómetros. Eram cerca de duas horas e meia a pé. Íamos à segunda-feira por volta das dez horas e a meio do caminho comíamos uma bucha. Por volta das 13 horas, começávamos a trabalhar. Ao sábado, trabalhávamos até ao meio dia, almoçávamos e voltávamos para casa. Havia alturas em que tínhamos de ficar a trabalhar ao domingo para «fazer a deita». Não sabe o que significa? Fazer a limpeza das lamas para começar a tirar a água.

J.A- O que comiam nas marinhas?

J. S- Levávamos mantimentos para toda a semana: café, pão, manteiga, sardinhas, bacalhau, batatas, chouriço de carne e para acompanhar o nosso garrafão de vinho.

J.A-Lembra-se do Padre Francisco?

J.S-Sim, lembro-me dele. Foi ver o trabalho dos salineiros na Marinha do Brito e sei que carregou uma canastra cheia de sal. Mas não aguentou mais nenhuma. Por lá ter ido, ia sendo preso pela P.I.D.E durante a greve dos salineiros.

J.A-Como começou a greve em 1957?

J.S- Nessa altura, eu trabalhava na Marinha da Bela Vista. Não fomos trabalhar na 2ª feira. No dia anterior começámos a falar uns com os outros nas ruas, nas tavernas. Dizia um:«Não vamos trabalhar». Outro dizia:«Eu também não». Outros diziam ainda:«Têm de dar mais dinheiro». E foi assim, de boca em boca, que os salineiros combinaram a greve.

J. A-Dizem os velhos salineiros que apareceram no alcatrão da Rua Direita frases escritas com cal. Lembra-se delas?

J.S-(pensativo) Não me lembro muito bem. Penso que diziam... «O sal... oiro branco... escravidão do salineiro» e «salineiros não vão trabalhar». Sei que eram várias frases escritas com cal ao longo da estrada que vai desde a Igreja à Praça de Toiros, mas não me lembro muito bem.

J.A- Quem escreveu essas frases?

J.S- Eu não sei e penso que ninguém sabe.

J.A- Enquanto estavam fugidos, quem foi carregar o sal que estava nas marinhas?

J.S- Os patrões foram buscar salineiros de Pegões, Águas de Moura, Setúbal e Faias. J.A-Foi preso?

J.S- Sim, fui preso. Andei fugido no Campo de Tiro com o Joaquim Cencira e, pensando que estava tudo mais calmo, fui dar o nome para trabalhar, na Casa do Povo.

J.A- O actual edifício da Casa do Povo?

J.S- Não. O antigo edifício da Casa do Povo ficava no Largo do Troino, onde é hoje a sede do Desportivo, ao pé da padaria do João Sena. Quando lá cheguei, estava a P.I.D.E à minha espera. Fui preso, penso que a 5 Agosto. Lembro-me que estavam a pôr areia nas ruas para as festas do Barrete Verde e levaram-me para a cadeia da G.N.R de Alcochete que dava para a Rua Nuno Álvares Pereira.

J.A-E depois?

J.S-Às 2h 30 m da manhã fomos para a prisão do Aljube.

J.A- Foi torturado?

J.S-Não, mas insultaram-me. Lembro-me que, quando cheguei à prisão de Aljube, fui à casa-de-banho e estava lá um homem que era padre e que estava preso há 14 anos. Aconselhou-me a não responder às provocações da P.I.D.E. Nunca mais o vi.

J.A- E os outros salineiros não foram torturados?

J.S- Houve um colega nosso que levou grandes tareias. Foi o António José Pereira. Estava sempre a dizer: «Quando sair daqui, nunca mais carrego sal». E malhavam nele. Lembro-me de ouvirmos outro salineiro a chorar numa cela.

J.A- Estava mais alguém consigo?

J.S-Sim. Eu e o Vitorino Pardal ficámos na mesma cela. Nos primeiros 7 dias, estivemos na cela 14, conhecida pelo Segredo. Quando fomos para lá, um policia disse-nos: «Entrem e apodreçam»

J.A-Como era a cela?

J.S-Era muito escura e só tinha uma frincha no alto que dava para a casa-de-banho. Às vezes, para vermos quem estava lá, punhamo-nos às cavalitas um do outro para espreitarmos pela frincha(ri)

J.A- Para onde foram depois?

J.S-Fomos para outra cela. Muito estreita que mal dava para duas camas. Quando nos levantávamos pela manhã, as camas eram recolhidas e presas na parede com uma correia.

J.A-. Quanto tempo esteve preso?

J.S- Estive preso três meses.

J.A- Como foi durante esses três meses?

J.S- O Vitorino Pardal contou-me a vida dele mais de cem vezes. Já não o podia ouvir. Era a namorada isto, a namorada aquilo. Houve momentos em que tínhamos raiva um ao outro(ri).

J.A- O padre Francisco foi visitar-vos?

J.S- Sim, ele foi à prisão. Mas só pôde visitar os que estavam menos isolados. Não pôde visitar-nos a todos.

J.A-Quando foi libertado mais o seu colega?

J.S- Fomos libertado no dia 4 de Outubro. Quando faltavam 3 ou 4 dias para nos libertarem, fomos para a Sala dos Clandestinos. Estava lá um alemão que tinha sido preso no aeroporto em Lisboa por ter feito um desvio de 1200 contos. Era gerente de uma fábrica.

JA-As vossas reivindicações foram conseguidas?

J.S-Foi feito um novo contrato colectivo de trabalho que estabelecia novas tabelas pelo carregos do sal. Tenho aqui esse contrato(pega no contrato). Aqui está:( lê) «Contracto colectivo dos trabalhadores das salinas de Alcochete, edição «A Voz de Alcochete». Foi elaborado em 1958 pelo Grémio da Lavoura de Alcochete e pela Casa do Povo de Alcochete. Com esta tabela, os patrões não podiam fugir aos novos preços por moio e também reduziram o moio de 18 canastras para 15 canastras, como era antigamente. Eu acredito que foi devido à nossa greve.

- Sabemos que tem uma lista dos salineiros presos. Podemos vê-la?

J.S. É claro que sim. Fiz esta lista alguns anos depois da greve. Já eu estava a trabalhar na Câmara Municipal. Tinha, e ainda tenho, boa memória e resolvi registar os nomes dos presos que estavam no Aljube.(mostra a lista e lê os nomes). São 21 salineiros os que tenho aqui registados. Só o Estevão Gregório não era salineiro. Esse foi preso pela P.I.D.E porque estava sempre atrás da polícia a ver o que faziam e foi libertado pouco tempo depois. Todos os outros tiveram a mesma sorte que eu. Mas houve quem tivesse tido pior sorte: alguns foram torturados.

Carlos Soares para o Jornal de Alcochete em 2008

Nota: esta entrevista foi escrita antes da entrada em vigor do novo acordo ortográfico

Estas fotos foram tiradas pelo sr. Agostinho Lóia, na Marinha do Sul  em 1958, um ano após a greve. O autor das fotos participou na revolta em 1957 e foi preso pela P.I.D.E.          A  máquina KODAC era do sr. João da Silva Samouqueiro.   A esquerda para a direita:  o primeiro com o gorro de campino-António Gomes; o salineiro  de cócoras  ( ?) o segundo, ao lado em pé, José Feliciano Samouqueiro;  o terceiro, quarto, quinto  e sexto (?) ;o sétimo salineiro João Oleiro; o oitavo salineiro  António Boieiro; o nono salineiro, o nosso entrevistado, João Samouqueiro; o décimo primeiro salineiro  Francisco Chefe; o décimo segundo salineiro-Carlos Luís Canastreiro; o décimo terceiro (?) ; o décimo quarto-Joaquim Labreca. Em cima da carroça também não há memória dos seus nomes.

Estas fotos foram tiradas pelo sr. Agostinho Lóia, na Marinha do Sul em 1958, um ano após a greve. O autor das fotos participou na revolta em 1957 e foi preso pela P.I.D.E. A máquina KODAC era do sr. João da Silva Samouqueiro. A esquerda para a direita: o primeiro com o gorro de campino-António Gomes; o salineiro de cócoras ( ?) o segundo, ao lado em pé, José Feliciano Samouqueiro; o terceiro, quarto, quinto e sexto (?) ;o sétimo salineiro João Oleiro; o oitavo salineiro António Boieiro; o nono salineiro, o nosso entrevistado, João Samouqueiro; o décimo primeiro salineiro Francisco Chefe; o décimo segundo salineiro-Carlos Luís Canastreiro; o décimo terceiro (?) ; o décimo quarto-Joaquim Labreca. Em cima da carroça também não há memória dos seus nomes.

Foto da autoria do Sr. Agostinho Lóia com a máquina do Sr. João Samouqueiro. Tirada em 1958. Em primeiro plano o salineiro Diamantino Maricato .

Foto da autoria do Sr. Agostinho Lóia com a máquina do Sr. João Samouqueiro. Tirada em 1958. Em primeiro plano o salineiro Diamantino Maricato .

Lista dos salineiros  presos no Aljube (fornecida pelo salineiro João Samouqueiro)

Lista dos salineiros presos no Aljube (fornecida pelo salineiro João Samouqueiro)

Comentários

Carlos Soares

01.09.2020 14:24

Está foi segunda entrevista feita a um antigo salieneiro. A primeira entrevista foi feita em 1994 ao salineiro Anibal Figueiredo.Foi esta entrevista que me fez pesquisar sobre a luta destes salineiros

Comentários mais recentes

01.09 | 14:24

Está foi segunda entrevista feita a um antigo salieneiro. A primeira entrevista foi feita em 1994 ao salineiro Anibal Figueiredo.Foi esta entrevista que me fez pesquisar sobre a luta destes salineiros

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