Trabalho de investigação jornalística de Carlos Soares
José César, aguadeiro desde os 14 anos, começou a tirar sal aos 17 anos. Trabalhou na Marinha Nova e em Vasa Sacos até aos 19 anos, altura em que entrou para o serviço militar. Esteve em Angola e, quando chegou do Ultramar aos 23 anos, ainda ia de madrugada carregar sal e à tarde trabalhava nos Furos de Água da Câmara Municipal. Um ano depois, abandonou o trabalho das marinhas e começou a trabalhar na Firestone. Actualmente taxista, lembra-se da greve dos salineiros como se fosse hoje e do Padre Ferreira: como este ia buscá-lo no seu carocha preto para o ajudar na missa do Samouco. Lembra-se principalmente de um homem que poucos alcochetanos sabem ter sido o autor das famosas frases escritas no alcatrão as quais, dizem, inflamaram os ânimos e alertaram os salineiros de que a greve estava a decorrer.
Jornal de Alcochete-Quantos anos tem?
José César-Tenho 63 anos.
J.A-Onde trabalhava em 1957?
J.C- Em 1957 trabalhava na Marinha Nova e ganhava 14 escudos por dia como aguadeiro. Levantava-me todos os dias às 4 h e 45 m da manhã, a minha mãe preparava-me a a comida e lá ia eu. Morava no Entroncamento e daí ia para a Marinha Nova, a cerca de 3 km. Como tinha medo, esperava pelos homens que vinham de Alcochete para ir com eles.
J.A-Quantos anos tinha?
J.C- Tinha 14 anos
J.A-O que se lembra da greve dos salineiros?
J.C-Eu era aguadeiro e os homens não falavam dos seus problemas ao pé dos mais novos. Às vezes, lá ouvíamos que ganhavam pouco e que o trabalho era muito. É claro que certas conversas nós não podíamos ouvir, nem conversavam ao pé de nós.
J.A- E da greve, falaram?
J.C- Recordo-me de que quando eles falaram da greve, eu perguntei se também fazia, eles riram-se e disseram que aquilo não era para mim. Como levei a questão da greve como uma brincadeira, no dia seguinte lá estava eu à espera dos homens que vinham de Alcochete e estranhei que não aparecessem. Resolvi ir sozinho às 5 da manhã, cheio de medo a percorrer os 3 km de caminho até à Marinha Nova. Quando cheguei, estavam lá três homens. Eram os criados da marinha e mais tarde chegaram os Punhos Reais. Ouvi dizer entre eles «Eles não vêm...Não vêm não!». Ninguém tirou sal nesse dia e fui-me embora.
J.A-E no dia seguinte, como foi?
J. C- Nesse dia tive de passar pela Ponte das Enguias e estava lá um carro parado com 4 pessoas. Uma delas saiu do carro e perguntou-me «Oh rapaz, onde vais?». Eu respondi «Vou para a marinha». Perguntaram outra vez «o que fazes lá?». Respondi «sou aguadeiro», voltaram a perguntar «e tu sabes se os homens vão trabalhar?», respondi «Não sei» e continuavam «não ouviste nada?» «Não sei» repeti a medo. Saí de lá a correr. Quando cheguei à marinha os criados estavam a carregar o sal.
J.A- Quantos homens trabalhavam nessa marinha ?
J.C- Entre 25 a 30 homens. Só estavam a trabalhar 5 homens. Por volta das 9 horas, chegou o tal carro com os homens que estavam na Ponte das Enguias. O meu primo António Sequeira, o Bolhão, é que me disse que eles eram da P I D E e para não lhes dar «conversa».
J.A- O que aconteceu aos homens que não foram trabalhar?
J.C-Andaram fugidos e outros, também fugidos, foram apanhados pela PIDE. Na fazenda do meu pai, «A Coitadinha», estiveram escondidos os meus tios, o Zezita, o Eugénio Viegas e o Quim do Covinha. Outros estiveram fugidos noutras fazendas ou fugiram para Lisboa onde tinham familiares. Dos que foram apanhados sei que quem esteve mais tempo preso foi o Vitorino Pardal Ele e outros quase não conseguiam dormir porque lhes fizeram a tortura do sono. O que eu sei é que estavam sempre a acender e a apagar as luzes da cela onde estavam presos.
J.A- Lembra-se de algum episódio que queira destacar desta greve?
J.C.- Eu sei quem escreveu com cal as famosas frases na avenida junto à Igreja Matriz!
J.A- A sério?! Andamos à procura há muito tempo e ninguém sabe dizer o nome do autor das famosas frases. Tem a certeza??
J.C-Certeza não tenho quem deve saber bem é a sua afilhada, a Dª Maria Isabel. De qualquer forma, sempre se falou, mas sem confirmação, no nome do Zé Serralha.
J.A- Zé Serralha?
J.C- Até lhe conto o episódio a que assisti em 1957. Eu estava no adro da Igreja e os Quintela vinham na charrete Rato abaixo, como lhe chamávamos, e os cavalos ou por terem visto as frases pintadas de branco ou por terem pressentido que havia algo de diferente no caminho que habitualmente faziam, assustaram-se, empinaram-se e não avançaram por breves segundos.
J.A- E os Quintela, como reagiram?
J.C-Não reagiram. Continuaram Rato abaixo, desceram da Charrete e entraram na Igreja.
J.A-Mas está seguro de ter sido o Zé Serralha o autor das frases.
J.C- Só depois da Revolução do 25 de Abril de 1974 é que o nome dele foi surgindo. Às vezes, em conversas entre amigos, ele descuidava-se e todos começaram a perceber que ele teria sido o autor das famosas frases. Nunca o disse a ninguém declaradamente, talvez o tenha dito à afilhada. Por brincadeira, os amigos dele até diziam que «ele sempre teve jeito para as letras».
J.A- Que importância tiveram essas frases no contexto da greve dos salineiros?
J.C- Como sabe, a greve foi espontânea, nunca houve uma reunião que decidisse a greve. Foi de boca em boca que os salineiros divulgaram a sua intenção de paralisarem. Todavia, houve quem não tivesse sido avisado e, quando se depararam com as frases escritas no alcatrão, voltaram para trás e não foram trabalhar. Há quem diga que foram essas frases que levaram a P I D E a pensar que a greve era organizada e que teria a ver com o Partido Comunista na clandestinidade. Mas tinha sido ideia de um só homem, sem qualquer intenção política, ao que parece.
J.A- Quem foi esse homem?
J.C-Naquela altura ele era salineiro e muito inteligente. Era um homem revoltado por natureza. Quando era pobre era revoltado, mas quando esteve bem de vida, continuava revoltado. Não se calava perante as injustiças. Era um verdadeiro contestatário. Conta-se que quando o ditador Oliveira Salazar morreu, ele lançou um foguete pela chaminé da sua casa para festejar o acontecimento(ri).
J.A- O. Zé Serralha foi sempre salineiro?
J.C- Não, ele deixou a vida de salineiro muito cedo. Era um homem insatisfeito e queria sempre mais. Foi o primeiro dono do restaurante do Barrete Verde, teve responsabilidades directivas no Grupo O Desportivo e nesse cargo fez muito bem ao Clube. Não é por acaso que a sua fotografia está na sala dos troféus.
A Greve dos Salineiros e as Festas do Barrete Verde
Segundo José César, as festas em 1957 foram uma tristeza com o arraial mais bonito que alguma vez tinha sido feito mas com pouca gente nas ruas. As pessoas estavam com medo e não queriam festejar. Outras estavam solidárias com os salineiros. A feira decorria atrás da Igreja Matriz e as largadas eram onde é hoje o Largo do Padre Cruz. Havia aí um Coreto donde José César, com 14 anos, assistiu às largadas. O ambiente estava muito pesado com as perseguições e as prisões dos salineiros. «Foi uma festa dramática» disse José César «eram mais os forasteiros na rua do que os alcochetanos» Todos sentiam uma grande insegurança com a P.I.D.E em Alcochete. A Festa nunca tinha sido tão pouco festiva.
Entrevista realizada por Carlos Soares para o Jornal de Alcochete, em 2008
Nota: Quando esta entrevista foi feita o novo acordo ortográfico ainda não tinha sido aprovado.
Os alunos que em 1957 frequentavam a Escola do Moisém e algumas das actividades que exerciam ou que vieram a exercer. De cima para baixo- 1ª fila: ao meio a professora Eduarda do lado esquerdo Joaquim José e César Carvalheira (Aguadeiro e salineiro) do lado direito Francisco Esgueirão e José Faria (Salineiro); 2ª fila: à esquerda José Cesário (Moço de estaleiro) e João Barroso; ao centro Francisco Labreca (Aguadeiro e salineiro); à direita Aníbal Pinto (Aguadeiro e mais tarde Moço de Fragata); 3ª fila: da esquerda para a direita João Seabra, Victor Monteiro José Alpista, Ernesto Rodrigues, António Ramos, Augusto Henrique; João Pisabarro (Moço de estaleiro), José Boavida, Paulo Sena, (?), António Sequeira, Joaquim Feliciano (Aguadeiro e salineiro), António veiga (Moço de estaleiro), Augusto Soares; 4ª fila: Manuel Taneco (Aguadeiro) António Silva (Aguadeiro), Francisco Pacifico, Manuel Catalão (Aguadeiro), Augusto Belchior, Joaquim Caramelo (Aguadeiro), Maximiano Teles (Aguadeiro e Moço de fragata), João Rei (Moço de Fragata), Caetano, Claudino Pacifico, João Leitão, João Calita, Lázaro, Luís Cebola (Aguadeiro), Francisco Moleiro; 5ª fila: Francisco Roque, António Pinto, Joaquim Teles (Aguadeiro), José Alemão (Aguadeiro), Marinho, João Lobo, José César (o nosso entrevistado-Aguadeiro), António Augusto, ( ? ), Armando Paixão, Armindo Pinto (Aguadeiro), Falcão, Taru, António Severo (Fotografia amavelmente cedida pelo Sr. José César)