Trabalho de investigação jornalística de Carlos Soares
Mais uma vez lembramos a vida dos salineiros de Alcochete e damos voz àqueles que em 1957 se revoltaram contra as difíceis condições de trabalho e contra os baixos salários. Estivemos com o Sr. Torcato Guerra, que começou a trabalhar nas salinas em 1933 e que em 1957 foi um dos perseguidos pela P.I.D.E e preso na prisão do Aljube. De aguadeiro chegou a punho real e deixa-nos o seu precioso testemunho de uma vida dura e sem condições de trabalho.
Jornal de Alcochete: Com quantos anos começou a trabalhar nas salinas?
Torcato Guerra: Comecei com oito anos, como aguadeiro. Aliás, todos os salineiros começavam como aguadeiros e só mais tarde é que tiravam sal.
JA: Começou a tirar sal com que idade?
TG: Aos dezasseis anos já estava a tirar sal das marinhas. Comecei na marinha da Conceição Grande.
JA: Lembra-se da revolta de 1957?
TG: Então não me hei-de lembrar! Fui um dos que foram presos.
JA: O que motivou essa revolta?
TG: Foi no Verão de 1957. Estávamos na marinha da Conceição Grande e fomos ter com o feitor Manuel Fernandes para que ele fosse, em nome dos salineiros, pedir aumento ao patrão e que o moio baixasse de 18 canastras para 15, como era antigamente.
JA: Então os salineiros carregavam mais 3 canastras do que era habitual?
TG: Sim. Diziam que era para compensar o desperdício de sal que acontecia no carrego dos barcos e, por isso, tínhamos de compensá-los com mais 3 canastras.
JA: Qual foi o resultado dessa reivindicação?
TG: Não resultou em nada. Parece que ainda disseram ao feitor que o que nós queríamos era mais trabalho no lombo. Nem baixaram o moio de 18 canastras para 15 nem aumentaram os nossos salários.
JA: Qual era o salário de um salineiro?
TG: Nós recebíamos por cada moio carregado e pagavam-nos, já não me lembro muito bem, penso que uma meia dúzia de escudos por moio.
JA: Em euros, podemos dizer que ganhavam por cada moio carregado cerca de 3 cêntimos?
G: Comparando com os dias de hoje, dá vontade de rir, não é? É claro que o custo de vida de há cinquenta anos atrás não se compara ao de hoje. Mas, sim, ganhávamos pouco comparando com o esforço que fazíamos a carregar as canastras cheias de sal! Sabe quantos quilos de sal carregava um salineiro? Fique sabendo que carregávamos 60 quilos por canastra, sempre a correr em pranchas estreitas.
JA: Os carregos eram muito duros?
TG: Nem calcula. Durante muito tempo, carreguei essas canastras e sei do que estou a falar. Era muito duro. Depois cheguei a Punho Real. Tinha a função de encher as canastras e cantar os moios.
JA: Cantar os moios?
TG: Sim. Os Punhos Reais, ao cantarem os moios, controlavam o que cada salineiro carregava. Cantávamos assim...(canta) “lá vai uma...” e depois dizia o outro “lá vão duas...” de seguida cantava outro: “duas e mais uma... três”. Isto até chegar às 15 canastras. Quando chegava a este número gritava-se...( grita) “talha”. O Punho Real pegava no punho e com a ponta molhava na lama e marcava na perna moio a moio até fazer uma série de cinco moios e depois fazia um traço oblíquo nos cinco traços horizontais. Era assim que cantávamos os moios.
JA: O sr. Torcato disse-nos que chegou a ser preso em 1957 por ter reivindicado melhores condições de trabalho. Quer contar como foi?
TG: Ainda me lembro da data . Fui preso em 29 de Agosto e saí da prisão no dia 4 ou 5 de Outubro. Depois de decidirmos não ir trabalhar no dia seguinte já estava a policia à nossa procura. Fugimos mas apanharam praticamente todos. Eu tinha fugido para Lisboa. Mas foram dizer aos meus pais que só queriam falar comigo, eles acreditaram e eu também e, quando cheguei a Alcochete, fui logo preso. Armaram-me uma cilada. Ainda me lembro de uma conversa que tiveram comigo... “Se tivesse o seu filho doente também fazia greve e não o levava para o hospital?” Diziam tudo para nos sentirmos culpados.
JA:Como foi na prisão?
TG: Primeiro fui à sede da P.I.D.E em Lisboa e, antes de entrarmos, disseram-nos: “Não os chateiem muito porque senão atiram-vos do 1º andar cá para baixo”. Era para nos intimidar. Depois fui para a prisão do Aljube que fica em frente à Sé de Lisboa, antes do Limoeiro. A nossa cela era tão pequena que só tinha uma cama e um bacio para fazermos as necessidades. Quando me levantava da cama os meus joelhos batiam na parede, de tão pequena que era.
JA: Chegou a ser torturado?
TG: Eu não fui mas sei de outros que o foram. Ainda hoje têm dificuldades em falar disso.
Entrevista realizada por Carlos Soares para o Jornal de Alcochete, em 2008.
Nota: Quando esta entrevista foi feita o novo acordo ortográfico ainda não tinha sido aprovado.