Muitos alcochetanos gostavam tanto deste padre que iam casar à Igreja de S. Tiago, após a sua transferência em 1959, para a nova paróquia em Almada.(Fotografia amavelmente cedida por Manuela Espiga)          Origem-FOTALMADA, Lda          Galeria de Arte

Muitos alcochetanos gostavam tanto deste padre que iam casar à Igreja de S. Tiago, após a sua transferência em 1959, para a nova paróquia em Almada.(Fotografia amavelmente cedida por Manuela Espiga) Origem-FOTALMADA, Lda Galeria de Arte

«A P.I.D.E pensava que o Padre Ferreira era o cabecilha da greve»

  Em 1957, Manuela Espiga tinha 21 anos e Lurdes Sequeira 12 anos. Hoje são um testemunho vivo da vida e obra do Padre Ferreira em Alcochete. Viveram os acontecimento da greve e lembram-se do Padre que teve a coragem de ir trabalhar com os salineiros para sentir o que sentiam esses homens na sua labuta diária. Após a sua ida às marinhas, deu-se a greve de 1957 e o Padre Ferreira foi interrogado pela PIDE e suspeito de ser o cabecilha da greve. A sua ousadia provocou uma série de acontecimentos que culminaram na sua transferência para Almada, em 1959. Mesmo aí a PIDE continuava a vigiá-lo. Com a revolução de 25 de Abril de 1974 gritou-se em Alcochete «Queremos o Padre Ferreira». Ele não veio, mas nunca foi esquecido.

Jornal de Alcochete- Manuela Espiga, quantos anos tem?

Manuela Espiga- 72 anos

J.A- Qual é a memória que tem do Padre Ferreira?

M.E- Era um jovem com 24 anos cheio de ideais e tinha acabado de ser ordenado. Saiu dos Olivais e veio logo para aqui exercer o sacerdócio. Era uma pessoa extraordinária. Conheci muitos padres mas aquele foi diferente.

J.A. Era diferente como?

M.E-A vida em Alcochete era uma tristeza. Só havia o trabalho dos carregos do sal e do carvão. Havia muita pobreza. O Padre Ferreira quis alterar esta situação. Estava sempre do lado dos mais carenciados e só queria fazer bem àqueles que nada tinham.

J. A- Como tentava o Padre alterar essa situação de pobreza?

M.E- Faziam-se peditórios aos camponeses e organizavam-se festas para angariar bens essenciais e dinheiro. Tenho aqui uma fotografia (mostra).É de um cortejo alegórico. Aqui estou eu de costas, junto do Padre Ferreira, com o rancho folclórico ensaiado por mim e por ele. Quando era preciso, até dançava connosco (ri). Fazíamos também teatro religioso e teatro de revista com a finalidade de angariar dinheiro para os pobres. Neste caso, este cortejo alegórico teve como fim angariar dinheiro para se conseguir uma casa para uma família. José Dias da Cruz já tinha dado o terreno e com o dinheiro angariado fez-se a casa.

J.A- Qual era a relação que o Padre Ferreira tinha com os salineiros?

M.E-Ele tinha uma boa relação com os proprietários das salinas e com os salineiros. Dava-se com os ricos e com os pobres. Saía da Igreja Matriz e ia ter com os grupos que se encontravam ao pé da Igreja da Misericórdia. Conversava com os homens, que ficavam encantados com ele, e jogava à bola com os rapazes. Mas as dificuldades que presenciava naqueles que trabalhavam nos carregos do sal, porque o trabalho era mal pago, preocupavam-no a ponto de ter ido às marinhas trabalhar com eles.

J.A- O Padre Ferreira foi carregar Sal?

M.E- Sim. Foi lá com a intenção de fazer um dia de trabalho. Vestiu-se como eles e andou descalço no meio do sal. Subiu pela prancha para pôr o sal na serra, mas os salineiros não o deixaram carregar mais do que uma canastra. Diziam que ele não tinha forças para aquilo (ri)

J. A- Só foi esse dia?

M.E- Sim, mas o facto de lá ter ido só veio complicar-lhe a vida. Alguém se aproveitou disso e, nesse mesmo dia, à noite, escreveram umas frases na rua, junto à Igreja, sobre os salários que os salineiros reivindicavam. Não ofendiam ninguém. No dia seguinte, a PIDE já estava em Alcochete.

J.A- A P.I.D.E também foi ter com o Padre Ferreira?

M.E-Chegou a ir à casa dele só que ele só falou com eles no cartório da Igreja. A P.I.D.E pensava que ele era o cabecilha da greve. Queriam saber o que tinha ido fazer na marinha, onde carregou o sal.

J.A- Era suspeito de ser o cabecilha?

M.E- Sim, o facto de lá ter ido levantou suspeitas a ponto de quererem interrogá-lo. Mas ele nunca teve medo e contou o que se tinha passado. Mas o que eles não sabiam foi que o Padre Ferreira, antes de ir à marinha, informou o Cardeal Cerejeira.

J.A- O Cardeal Cerejeira sabia da ida à marinha do Padre Ferreira!?

M.E- Sim, ele tinha-se aconselhado primeiro com o Cardeal Patriarca que era o nosso Bispo, porque Alcochete, na altura, pertencia à diocese de Lisboa. Não foi ao acaso.

J.A- Foi o Padre Ferreira que lhe disse isso?

M.E- As pessoas mais próximas do Padre souberam desse contacto. O Padre contactou em primeiro lugar o Cardeal Cerejeira e disse-lhe que queria ir fazer um dia de trabalho com os salineiros para sentir o esforço deles.

J.A-Mas como foi essa conversa com a P.I.D.E?

M.E- Não me lembro muito bem, mas queriam saber por que razão ele tinha ido fazer o tal serviço, nas marinhas. O Padre Ferreira chegou a comentar connosco o teor da conversa, mas não tenho a certeza . Lembro-me que, quando a P.I.D.E entrou, a população se juntou toda à volta da Igreja Matriz e estava tudo preparado para haver guerra. Se a P.I.D.E tivesse tido o azar de levar o Padre Ferreira, eles não sairiam de lá com muita saúde (ri)

J.A-A P.I.D.E fez alguma coisa?

M.E- Não. Saiu como entrou. E o povo todo cá fora.(ri)

J.A- Mas o Padre mais tarde foi transferido, não é verdade?

M.E-A saída do Padre no final do ano de1959 foi um pranto. As pessoas juntaram-se todas na última missa dada por ele e choraram muito. Depois da missa, foi uma camioneta cheia de paroquianos de Alcochete acompanhá-lo até à nova paróquia em Almada, para onde tinha sido transferido. Fomos acompanhá-lo porque sentimos que era uma injustiça e quisemos ser nós a deixá-lo lá.(emocionada)

J.A. Mas a que se deveu a sua saída da paróquia de Alcochete?

M.E-Não tenho a certeza. Mas quando se colocou essa questão da sua transferência, fez-se um abaixo- assinado que foi entregue ao Cardeal Cerejeira.

J.A- Quem foi entregar essas assinaturas?

M.E-(pensativa) Quem foi entregar esse abaixo-assinado foi um grupo de dez pessoas, lembro-me que foi o Dr. João Leite, que chegou a ser Presidente da Câmara de Alcochete, a sua irmã Maria de Lurdes Leite, a Maria de Lurdes Santana...dos outros não me lembro.

J.A- No entanto, esse abaixo-assinado não conseguiu convencer o Cardeal Cerejeira. M.E- Não, e foi uma pena para todos nós. O Cardeal chegou a dar uma resposta ao grupo que se deslocou a Lisboa, «que não se punha uma lâmpada debaixo do alqueire mas sim em cima de uma mesa para alumiar a casa».

J.A- O que queria dizer com essas palavras?

M.E- Suponho que o Cardeal percebeu que o Padre já não tinha condições para continuar a sua obra em Alcochete e transferiu-o para Almada, onde havia problemas. O Cardeal viu nele o homem que podia ajudar a resolver os problemas dessa paróquia.

J.A- Mas por que razão o Padre já não tinha condições para continuar na paróquia de Alcochete?

M.E- Nós começámos a perceber isso quando os proprietários das marinhas, alguns deles muito religiosos, deixaram, depois da missa, de se dirigir à sacristia para falar com o Padre Ferreira. Esse foi um sinal que os proprietários deram por estarem descontentes com o Padre. O Cardeal Cerejeira e o próprio Padre Ferreira perceberam isso. A razão da transferência pode estar aí.

J.A- Nunca foi esquecido?

M.E- Nunca. Muitas pessoas iam casar-se a Almada ou a Lisboa para que fosse ele a realizar o matrimónio. Eu, por exemplo, casei-me em Almada, na Igreja de Santiago e a minha irmã na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, sempre com o Padre Ferreira. Uma vez ele organizou uma visita a Fátima, estava já em Almada, e eu resolvi ir também. A camioneta passou por Alcochete para me apanhar e não calcula o alvoroço. Juntou-se tanta gente no sítio onde parou, com todos a gritarem...«O padre é nosso! O padre é nosso!» (emocionada).

J.A- Qual seria a melhor homenagem que se lhe poderia fazer?

M.E- Perpetuar o seu nome em Alcochete seria uma boa homenagem para este homem que sempre se preocupou com os alcochetanos. Haver uma rua com o seu nome ou um outro espaço seria, sem dúvida, a melhor homenagem que lhe poderíamos fazer.

Carlos Soares para o Jornal de Alcochete em 2008

Nota-Quando esta entrevista foi realizada ainda não tinha sido aprovado o novo Acordo Ortográfico 

Cortejo alegórico realizado em 1958: à esquerda o Padre Ferreira; de costas,  no lado direito do Padre,  Manuela Espiga, ensaiadora ; no lado esquerdo do Padre, Maria Amélia Barrona e Maria de Lurdes Santana, catequistas. As crianças da mais próxima até à mais distante:  os dois netos de José Grilo Evangelista;  atrás, Maria Angélica e Manuela Boieiro;  em frente do Padre, Lurdes D´Avó e Helena Chagas;  atrás, Piedade e Mariana Salmoura;  mais ao lado, Maria do Rosário Peralta, Maria Emília e Alice Pires.(Fotografia amavelmente cedida por Manuela Espiga)

Cortejo alegórico realizado em 1958: à esquerda o Padre Ferreira; de costas, no lado direito do Padre, Manuela Espiga, ensaiadora ; no lado esquerdo do Padre, Maria Amélia Barrona e Maria de Lurdes Santana, catequistas. As crianças da mais próxima até à mais distante: os dois netos de José Grilo Evangelista; atrás, Maria Angélica e Manuela Boieiro; em frente do Padre, Lurdes D´Avó e Helena Chagas; atrás, Piedade e Mariana Salmoura; mais ao lado, Maria do Rosário Peralta, Maria Emília e Alice Pires.(Fotografia amavelmente cedida por Manuela Espiga)

Comentários mais recentes

01.09 | 14:24

Está foi segunda entrevista feita a um antigo salieneiro. A primeira entrevista foi feita em 1994 ao salineiro Anibal Figueiredo.Foi esta entrevista que me fez pesquisar sobre a luta destes salineiros

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